Sobre

A história do blog começa antes mesmo que eu soubesse o que era internet. Minha avó Alzira era pintora, nos finais de semana, quando meu pai ia me buscar, lembro com muito carinho da casa enorme, das paredes com paisagens bucólicas, naturezas mortas com estudos de luz impecáveis, flores... Nos fundos da casa o ateliê com telas ainda em branco, cavaletes, pincéis, tintas de tecido em tons diversos e uma paleta denunciavam as misturas de tinta já feitas. Quero pintar igual a vó Zira, eu dizia.

Na casa da vó Izaura, antes da sala de televisão onde a família costumava se reunir para assistir o noticiário, havia um cômodo pouco usado com dois sofás verdes, dois e três lugares, mesinha de centro em vidro e nas paredes duas réplicas de quadros do período Rococó. A imagem de uma moça, usando um volumoso vestido de época, o olhar tímido e apoiada na base de uma estátua de mulher que estendia os braços para um gorducho anjinho. Passei anos sonhando em usar um vestido tão bonito quanto o dela, contemplando a beleza da moça e tentando imaginar quem ela teria sido. 

De uma coisa eu tinha certeza, era linda, mas tão linda, tão linda que alguém decidiu transformá-la em pintura. Na minha cabecinha estava muito claro, todas as coisas bonitas eram desenhadas e pintadas. Anos depois eu descobri o nome do autor, François Boucher era francês. Mais tarde minha mãe me ensinou a gostar das pinturas de Tarsila do Amaral, uma mulher, brasileira, que fazia arte moderna. E mesmo sendo desproporcional e estranho eu aprendi a amar o Abapuru.

As cores, os traços simples, nossa tudo tão lindo e de uma artista brasileira! Uma pintura famosa de uma mulher brasileira. Quer dizer, aqui "pertinho" de mim viveu uma artista mundialmente famosa por seu talento. No ano 2000 mamãe foi convencida a investir pesado em minha educação, compramos a Enciclopédia Britânica Barsa, e, um moderno CD ROM com todo o conteúdo da coleção de livros digitalizada para facilitar a elaboração e pesquisa nos trabalhos escolares. O el dourado do conhecimento estava em minhas mãos.

Num dos livros encontrei uma rápida biografia da Tarsila e outros quadros lindos. Mamãe prontamente fez uma xerox colorida dos que mais gostou, e jurou emoldurar, coisa que só aconteceu quando fizemos nossa primeira mudança, anos depois. Enquanto minhas avós ostentavam paisagens bucólicas, obras de natureza morta e da estética Rococó nós teríamos arte moderna em toda a casa. 

Naquela época ter um computador com internet em casa era artigo de luxo. Lembro quando mamãe comprou o nosso e da extensa lista de recomendações de uso. Como ligar; como conectar à internet; quais os horários mais baratos para não mandar a conta de telefone para o espaço; quanto tempo eu poderia dedicar a navegação na web, e claro, como desligar e proteger o computador da nociva poeira. As madrugadas de sexta para o sábado nunca foram tão esperadas. Era o relógio marcar a meia noite, e um pulso era suficiente para abrir a janela do mundo.

O que eu fazia? Joguinhos principalmente, mas a coisa que mais gostava era saber sobre pinturas. Pesquisava muito sobre Tarsila, queria saber mais sobre ela, o que e onde estudou, se saiu do Brasil, seus quadros mais importantes. Todo fim de semana lá estava eu visitando o site oficial da Tarsila do Amaral. Em pouco tempo não havia nada que eu não soubesse sobre ela, a mulher que pintou coisas lindas e diferentes que eu não conseguia entender.

Eu também colecionava copos de requeijão dos filmes lançados pela Disney, dos personagens da turma da Mônica, Perna Longa, os Loney Toones, tudo mesmo. Um dia colocaram uns desenhos de umas bandeirinhas sem graça, uns meninos empinando pipa, nem deu vontade de ter. É arte moderna igual as de Tarsila, dizia minha mãe. Portinari. Nunca tinha ouvido falar nesse nome. Num sábado à tarde, coloquei no Cadê, o Google da época, o nome do artista para ver mais coisas. Caí no site oficial dele. 

Cândido Portinari, descendente de italianos, pobre, pintava desde criança. Lá estavam os meninos empinando pipa e as bandeirinhas coloridas. Quadros realmente lindos.Ver mais obras. Foi quando vi pela primeira vez a Menina sentada.


Meu Deus era eu ali. Com certeza era eu. Lembro de sentir meu coração batendo acelerado de ter levantado várias vezes. E queria mais. Quais as dimensões reais do quadro? Em que galeria estava exposto? Estava aberto a visitação? Será que era muito caro? Dá para imprimir um pôster e colocar no meu quarto? Vou colocar no quarto de minha filha, se eu tiver uma.

Portinari precisou sair do Brasil para enxergar melhor as belezas do povo brasileiro e sua cultura, foi o artista que melhor retratou a mistura de raças e povos por aqui. Sua obra foi de fundamental importância para valorização da identidade nacional. Ativista e militante político, usou a pintura para denunciar a miséria que o povo nordestino enfrentava. Pintou São Francisco na Igreja da Pampulha, mas no lugar de um lobo garboso e forte, pintou um vira lata e atraiu a ira de religiosos. Mas é o que somos, o Brasil é um país de lindos vira latas. 

Por isso esse blog existe. Minha intenção aqui é fazer homens, mulheres, meninos e meninas negros enxergar em si beleza através do cinema, da música, das artes plásticas, da moda. Apresentar artistas contemporâneos, negros ou não. Representatividade mudou a minha vida, e está mudando a vida de muita gente, por isso é tão importante, por isso faz diferença.

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