Fazendo a cabeça | Moda étnica. Sério?

Não é a primeira vez que um post em rede social obriga uma empresa a repensar o seu produto. Dessa vez foi no Rio de Janeiro, a carioca Tâmara Isaac fez o seguinte comentário no seu perfil de facebook


Dada a repercussão gigante que o post daTâmara teve a marca respondeu
"A Maria Filó esclarece que a estampa em questão buscou inspiração na obra de Debret. Em nenhum momento houve a intenção de ofender. A marca pede desculpas e informa que já está tomando providências para que a estampa seja retirada das lojas"

Quando vi a notícia no twitter respirei fundo e fui verificar os comentários das pessoas referentes ao texto. Foi de apertar o coração. Diante de uma experiência dessas eu percebo o quanto nosso país sofre com a falta de conhecimento da própria história. Já escrevi no blog sobre isso, é de fundamental importância que as pessoas entendam a função social e histórica do trabalho do artista que inspirou a estampa. O texto sobre Drebret, inclusive é um dos meus posts mais lidos. As pinturas do francês são essenciais para entender como era a sociedade no Brasil colonial, elas precisam e devem ser lembradas, em museus, exposições e livros de história.

No dia 9 de janeiro de 2003, há 13 anos, foi sancionada a Lei 10639/03 que torna obrigatório e regulamenta o ensino da cultura afro brasileira em escolas de ensino fundamental e médio. Por lei os estudantes teriam em seu conteúdo programático a história do continente africano, de seu povo, a sua luta em terras tupiniquins, a cultura negra brasileira, a formação da sociedade nacional, a contribuição do povo preto na economia e na política pertinente a história do Brasil. Lindo né?

Se a lei estivesse sendo bem aplicada, as pessoas teriam vergonha de vestir uma peça de roupa que lembra um dos períodos mais tristes da história de nosso país. Moda é parte da construção social, de nossas relações com o ambiente que nos cerca, com a posição que ocupamos, o trabalho que desempenhamos, falo muito disso e não é exagero. Quando Coco Chanel libera o corpo feminino do espartilho, de chapéus  extravagantes e disse sim a calça; peça que antes era exclusividade do vestuário masculino; ela reivindicou liberdade. Uma mulher que trabalha de salto alto, troca semanalmente a cor do esmalte e está sempre bem maquiada, diz que não usa os pés e as mãos num ofício pesado, não realiza tarefas domésticas como lavar louça e não transpira excessivamente em suas atividades diárias.

A estampa da Maria Filó mostrava a imagem de negras entre palmeiras, carregando seus filhos a tira colo e uma enorme cesta de frutas na cabeça, servindo mulheres brancas. Tem também um grupo trabalhando no que parece um tacho de farinha ou melaço, uma delas carrega um pote pesado, pés descalços... Agora imaginem que tipo de mensagem seria transmitida por alguém usando uma peça dessas. "Ah Jan, mas foi uma homenagem ao artista, é parte da nossa história", Sim é parte da nossa história precisa ser lembrada para que não se repeta. PRECISA estar nos livros de história, PRECISA ser debatido, PRECISA ser constantemente questionado pois nós sentimos os desdobramentos disso mesmo mais de 200 anos depois, o Brasil foi o último país do mundo a abolir o trabalho escravo. Agora adornar-se de escravidão ou é muito mau gosto, ou falta de noção, ou ignorância, ou tudo isso ao mesmo tempo.

Mesmo quando tentam acertar na homenagem não dá certo. No mês passado a Boticário lançou a linha de maquiagem Make B Africaníssima. A campanha, mesmo modesta levando em consideração outras linhas da marca, estava linda. Uma mulher negra, a pele clara, com uma make poderosa, um turbante lindo, colares de sementes. Corri para ver a linha de batons e que decepção. Os nomes das cinco cores consistiam em cor + étnico, sendo assim temos o Pink Étnico, Roxo Étnico, Vermelho ÉtnicoMarrom Étnico e o Amêndoa Étnico.


O continente africano possui 54 países independentes, 48 deles são continentais e 6 insulares. sem falar nas quatro províncias (territórios nacionais) e os 10 territórios estrangeiros. Se fossemos visitar cada um desses lugares com certeza encontraríamos uma diversidade cultural gigante. Para constar, o fotógrafo Mário Gerth passou quatro anos viajando somente entre o Quênia e a Etiópia e encontrou uma variedade cultural bastante significativa. O grande problema é que o termo étnico está sendo usado com frequência para relacionar toda e qualquer expressão ou produto que não tem relação com a cultura branca. Acreditem, eu já vi creme para cabelos étnicos, se não tivesse a foto de uma menina negra eu não saberia se servia para mim.

O étnico é marajoara, é yanomami, é peruano, é maia, é inca, é asteca, é havaiano, é hindu, é sul africano, é caboverdiano, é aborígene... Mesmo separado por alguns quilômetros de distância, ou até por um oceano inteiro, algumas empresas colocam tudo na mesma caixinha porque é mais fácil e para eles é tudo igual. Nós sabemos que não é. Isso é fruto de um posicionamento eurocêntrico racista, preconceituoso e, no caso do Boticário, preguiçoso. São 54 países e não conseguiram encontrar uma referência de cor rosa, aliás pink, que exaltasse a beleza da mulher negra. A coleção que deveria celebrar o encontro da mulher negra brasileira com a sua ancestralidade se resumiu ao genérico e vazio étnico.

A  Lei 10639/03 é uma ferramenta para combater o racismo, trabalhar positivamente a auto estima de crianças negras e lembrar que o povo preto brasileiro não é descendente de escravos e ponto. Somos descendentes de reis e rainhas, de guerreiros, de gente que mesmo diante da violência diária resistiu e lutou pela liberdade. Somos herdeiros de um povo profundamente forte e incrivelmente lindo, não de correntes. Essa memória e essa história merecem homenagem. PRECISAM ser lembradas.





Comentários

  1. Nossa, maravilhoso este post. Obrigada por ele. Vou compartilhar!

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  2. Muito bom, Jan. É preciso também atenção para a formação os professores, adequar o currículo nas universidades.Para que a Lei seja efetivamente implementada é preciso criar condições que vão além da determinação legal. Essa construção está só começando...

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    1. Verdade Ana, torço muito para que as escolas, principalmente as cristãs que são mais preconceituosas, fiquem mais sensíveis a educação da cultura negra e africana. Tenho lido e descoberto histórias lindas do povo negro aqui no Brasil. Não há razão para negligenciar relatos como os que estou descobrindo de ninguém.

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  3. Parabéns pelo post.
    Não sabia desse caso da Boticário e fiquei bastante descontente com a marca

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