Antes que o mundo acabe




E se o mundo já estivesse caminhando para um colápso há mais tempo do que a gente imagina? Será que, no fim das contas, a gente nunca fez parte do mundo real de verdade e só agora, depois de quase um mês trancados em casa a gente começa a entender como é doloroso ver as nossas dinâmicas sociais serem interrompidas? 

Quando eu li Ideias para adiar o fim do mundo de Ailton krenak, eu não tinha noção do quanto esse livro seria importante para mim nesse período de isolamento. Entre uma leitura e outra, sempre me pegava voltanto a esse livro e às reflexões propostas por ele, aliás reflexões muito maiores do que o que a quarentena tem me imposto nos últimos vinte dias.

Ailton nasceu na região do rio Doce, sim, o mesmo rio que sofre com a lama da Vale. Um dos conceitos que ele coloca em xeque nesse livro é o de humanidade. Da ideia de que existe somente um jeito de se viver e ser humano na terra, e do quanto os povos indígenas, e quilombolas, foram "convidados" a deixar sua existência tida como primitiva e retrógrada para integrar o seleto grupo da humanidade que, vale lembrar, é branca e europeia. É na oposição desse conceito que reside a força e a resistência indígena que ele descreve no Brasil. 

"O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos"

Os Krenak, tinham uma estreita relação com o rio Doce, hoje estão impedidos de usufruir daquelas águas. E não é somente o uso prático, para beber, se banhar, pescar ou até mesmo a caça. Toada a relação deles com a natureza e a espiritualidade foi violentamente interrompida e não há previsão alguma de quando poderão fazê-lo outra vez. Uma geração inteira de criaçanças está crecendo sem saber nadar, a forma que encontraram de minimizar esse dano foi fazer com que elas aprendam em piscinas improvisadas.

"O rio Doce, que nós Krenak, chamamos de Watu, nosso avô, é uma pessoa, não um recurso, como dizem os economistas. Ele não é algo de que alguém possa se apropriar; é uma parte da nossa construção como coletivo que habita um lugar específico, onde  fomos gradualmente confinador pelo governo para podermos viver e reproduzir as nossas formas de organização."

A leitura de Ideias para adiar o fim do mundo, é um convite a um exercício praticado pelos ancestrais de Ailton há pelo menos 520 anos. Quando ele nos provoca a adiar o fim do mundo, quer dizer que precisamos de um pouco mais de tempo, viver um pouco mais as nossas própria histórias. Quando o céu parece ficar mais baixo precisamos respirar fundo e empurrá-lo para cima. Ele conta que os povos originários do Brasil chegaram ao século XXI a muito custo e seguem reivindicando por seus direitos. Nunca foi fácil pra eles, o seu mundo entrou em colápso há tempos e sua descendência segue empurrando o céu e respirando fundo, e contando mais histórias.

Ideias para adiar o fim do mundo foi o terceiro livro mais vendido na Flip de 2019, Ailton já figura entre as personalidades mais marcantes na história do Brasil desde a Assembléia Constituinte em 1987, quando em seu discurso na câmara de deputados pintou seu rosto com uma pasta preta feita de jenipapo. Ali ele estava empurrando o céu para contar mais uma história, e que honra estar viva para ouvir, ler e me inspirar nele, antes que o mundo acabe.

Comentários

  1. O tanto que temos a aprender com esses homeme e mulheres que são os verdadeiros filhos do Brasil. O que estamos vivendo hoje não se aproxima nem um pouco do que eles têm experimentado aqui por tantos anos...

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