Conto - O Folgazão



É o céu tingir de laranja e o coração descansa. O peito cheio de fôlego pra lida suspira feito bucho de bode furado e o que sobrou do homem lá dentro vai amolecendo junto. O dia inteiro do rosto, só se vê os olhos apertados da claridade e da fuligem que sobe cada vez que a foice golpeia a base da cana caiana, mas tá, antes fosse. O dotô chama dotro jeito, um punhado de letra e número que a gente nem sabe mais. Foi-se embora o homem, foi-se embora a doçura, foi-se embora até a poesia da caiana. A foi-se é tudo.

Tem muita gente de fora esse ano. Gente demais. Mulher e menino. Tudo de longe. Nóis nem fala muito, a foice e a canseira não deixam, mesmo no sol a pino. Só senta e come, quem se conhece inda troca duas ou três coisa, eu mesmo não conheço mais é ninguém. Dou o gôto no comer e vou encostar na sombra da jaqueira. Mas bom mesmo é a hora do céu laranja. Subindo a serra dá pra ver a janela iluminada e Marta com alguma cantiga. Marta fica linda nos versos pro Carneiro Manso.

Carneiro Manso...tá tudo lá no quartinho me esperando e Marta agarrada na colher de pau na beira do fogão. Hoje vai ser cuscuz e galinha guisada. A chinela gasta e o cabelo preso num cocó com o suor escorrendo do cangote, ela não precisa de mais nada, eu não preciso de mais nada, só do chamego de Marta. A comida fumegando na mesa e nós dois ali um para o outro.

- Vou pro quartinho terminar a gola.

- Tá ficando lindo, há de ser a mais linda do desfile.

A gente riu. Era bem verdade. Havia de ser mesmo.

Linha na agulha lantejoula conta lantejoula. Tu já pensasse que doidice deixar um briquedo lindo desses dormir tanto tempo? Lantejoula conta lantejoula. No tempo de meu pai era perigo demais, não tinha isso de hoje não. Lantejoula conta lantejoula. A guiada era lavada de sangue, era prova de valentia e tinha caboclo que saía sem saber se voltava pra casa. Lantejoula conta lantejoula. Eu era menino, mas lembro direitinho da desgracera que vi. Lantejoula conta lantejoula. Foi o povo do Cambinda e Mestre Salú que deram destino à malvadeza que faziam, o brinquedo da gente só cresce no dia que os mestre derem as mão, enquanto nóis ficar nessa arenga violenta não há jurema que sustente. Lantejoula conta lantejoula. Pai tava era certo. Taí todo mundo agora, até o estandarte a gente cruza no desfile, mestre fazendo verso no terno do outro e as catita tudo amigada... Lantejoula conta Lantejoula. Marta sai de rainha esse ano. Já foi baiana, minha baianinha. A brincadeira foi quem me deu Marta. Não podia ser diferente. Lantejoula conta lantejoula, lantejoula conta lantejoula, lantejoula conta lantejoula... Ela arrumou uma máquina de costura e tá ali na sala cuidando no manto de rainha. Veio me perguntar se eu não queria deixar o surrão pra desfilar mais ela na corte. Lantejoula conta lantejoula. Onde já se viu caboclo sem gola? Caboclo sem gola é Mateu! Ademais tem que pedir licença ao caboclo para entrar na corte e a essa altura, com quase metade da gola bordada ele não dexava de manera nenhuma. Lantejoula conta lantejoula. Marta sabe, ela sabe como é depois fica de invencionice. Ninguém manobra guiada feito eu, pra onde vou com coroa de rei? Lantejoula conta lantejoula. Tanto que não se magoou, tá toda animada de entrar na corte. Lantejoula conta lantejoula, lantejoula conta lantejoula, lantejoula conta lantejoula....

O pescoço começa a pesar, a coluna envergada a doer e os dez dedos estalam uma, duas, três vezes. Abrindo e fechando as mãos. As juntas feito os nós da cana que me esperam no dia seguinte, sem sabor nem sentimento, dedos que se agarram a guiada que bordam a gola. Dez dedos. Eu sou um homem só e a dureza que a foice me dá o Maracatu me toma, e não tem canseira no mundo que derrube meu amor pelo Carneiro Manso, meu brinquedo. Lá vem Marta...

- Dormir né Severino?

- Dormir Marta.

- Tá ficando linda meu filho!

- Há de ser a mais linda esse ano Martina!

Ela me estendeu a mão e os cinco dedos cumpridos. Dei a minha e ela me dedicou um beijo depois a levou para o calor do peito como que faz uma prece

- Há de ser mesmo meu amor, agora deixe de teimosia e vamo pra cama que a cigarra já silenciou faz é tempo

Comentários