Monumento a Sebastián de Belalcázar em Cali cai em dia de protestos em todo o país contra a impopular reforma tributária do presidente Iván Duque em meio à terceira onda da covid-19Foto: Paola Malfla |
O texto a seguir é fruto de uma série de reflexões sobre a história da colonização em várias partes do mundo e como a representação de líderes políticos e colonos em espaços públicos tem sido questionada, e derrubada sistematiamente diante dos contextos atuais. O ponto de partida é um filme que mistura história e ficção, uma obra que não está necessariamente relacionada à colonização mas que contexta uma filosofia política sendo exterminada prática e simbolicamente. Outras representações históricas são aqui colocadas, perseguidos e mortos por regimes autoritários, o resgate de monumentos já destituídos, mas que seguem carregados de força simbólica. A ficção também não escapa a essa narrativa, a franquia Harry Potter é um dos exemplos aqui levantados. A derrubada do Monumento a Sebastian de Balalcázar em Cali, em abril de 2021, dá seguimento a uma série de ações que põe em xeque essas representações.
Lançado em 2003 o filme alemão “Adeus Lênin” se passa no período do fim da guerra fria. Para contextualizar melhor, cabe uma rápida explicação. O senso comum responsabilizava a Alemanha pelas duas guerras mundiais, sendo assim as potências aliadas, Estados Unidos, França e Reino Unido, entendiam que ocupar a Alemanha era uma forma de impedir que o país voltasse a ser uma ameaça no futuro. O país foi dividido em dois lados, um capitalista sob a gestão dos países aliados, e um comunista sob a gestão da União Soviética. Berlim havia ficado no lado soviético, mas, por ser a capital também foi divida entre as quatro potências, cada uma assumindo a gestão do seu próprio setor. De acordo com essa divisão a parte Oriental era de reponsabilidade da União Soviética, comunista, e a parte Ocidental eram de responsabilidade dos Aliados, capitalista.
Inicialmente a divisão era apenas ideológica, Winston Churchill, então Primeiro Ministro britânico, chamava a divisão de “Cortina de Ferro”, pois separava dois modelos econômicos que se opunham. Em agosto de 1961 a divisão deixou de se limitar a modelos de gestão opostos. Um muro cercando toda a parte capitalista começou a ser construído e o trânsito entre os dois blocos só poderia ser realizado com autorização do Estado. No filme, o personagem Alexander vive com sua mãe, Christiane, no lado Oriental. A mulher é definida pelo filho como “casada com a pátria socialista”. Durante a celebração dos 40 anos da República Democrática Alemã, Alex se junta aos manifestantes que se opõem ao governo. Quando Christiane vê o filho sendo preso por oficias do Estado, entra em colapso, caindo num coma de oito meses.
Ao despertar, a Alemanha que
Christiane conhecia foi drasticamente transformada. O muro de Berlim caíra, o
capitalismo avançava numa velocidade assustadora, famílias inteiras migraram do
lado oriental para o lado ocidental em busca de melhores condições de vida, e
sua própria família tinha aderido a muitas dessas mudanças. Alex fora alertado
pelo médico que a mãe estava com a saúde frágil, portanto não podia mais passar
por grandes picos emocionais semelhantes ao que a deixou acamada por tanto
tempo. Sentindo-se responsável pelo incidente, Alex resolve construir uma
realidade paralela para ela. Lá a RDA[1]
prospera e o Comunismo da União Soviética segue firme como nunca. Claro que
esconder a verdade não seria fácil.
Uma
das cenas mais marcantes, e que dá nome ao filme, é momento em que Christiane
sai de casa e se depara com um helicóptero removendo uma estátua do
revolucionário Lenin, de braço estendido, quase um gesto de súplica. Ali fica
claro para ela que algo tinha mudado profundamente. Todo esse contexto,
histórico e da proposta no longa metragem, serão ferramentas para entender
melhor a relação das pessoas com marcos históricos, monumentos, suas derrubadas
ou agressões a eles infligidas como recurso de revisionismo narrativo. Em que
lugar determinadas histórias devem, e como devem, estar? Fanon reflete sobre
isso em Condenados à terra. O autor
lembra que o colonizador não só faz história como sabe que a faz. Nunca é a
história do lugar que ele ocupa, mas de sua metrópole, aquele território passa
a ser uma extensão do seu império.
Trecho do filme Adeus Lenin
Depois
do massacre que vitimou nove negros numa igreja em Charleston em junho de 2015,
vários monumentos passaram a ser questionados e violentamente depostos. Outros
monumentos estavam na mira do movimento negro. Em 2017 Supremacistas brancos
estadunidenses marcharam em defesa do monumento ao oficial militar Robert E.
Lee, que estava sob ameaça de ser derrubado. Outra estátua que estava na mira
dos ativistas, onde consta o ex-presidente Lincon. Ele está de pé e com uma das
mãos estendidas sobre um homem negro, como quem lhe concede uma bênção, o negro
está de joelhos, mas com as correntes que o prendiam rompidas. Uma memória da
abolição americana que, segundo David Blight, Professor de História
Universidade de Yale, especialista em estudos sobre afro estadunidenses e a
guerra civil, tem sim um teor racista, mas precisa ser preservada, pois trata-se
de um marco importante em todo processo abolicionista.
Um
dos argumentos levantados pelo professor é que o dinheiro para construir o
monumento na época, 20 mil dólares, foi arrecadado quase inteiramente entre
negros americanos, ex-escravos. A escultura em questão é semelhante a outras
duas, uma muito mais próxima da realidade brasileira e outra da ficção. A
primeira fica no bairro de Santo Antônio, centro do Recife. O monumento ao
abolicionista Joaquim Nabuco foi erguido em 1915, ele figura no topo olhando
para o horizonte como quem aponta os novos rumos que país deveria tomar após o
fim da escravidão. Aos seus pés, figuras negras o adoram como um redentor.
Outro exemplo vem da ficção. Em Harry Potter e
as relíquias da Morte. A autora trás de forma alegórica a discussão racial conduzindo
toda a saga do jovem bruxo. Nesse último volume, os Comensais da Morte[2]
dão um golpe político no mundo mágico, esses bruxos, além de usarem as forças
das trevas, são uma espécie de Supremacistas puro-sangue[3]
radicais e opõem-se ferrenhamente ao relacionamento com trouxas[4] ou
indivíduos sangues-ruins[5]. O
Ministério da Magia agora segue as diretrizes desse grupo, no átrio da sede da
instituição, onde constava a Fonte dos irmãos mágicos, agora estava o Monumento
Magia é Poder[6].
Em
entrevista a BBC, o professor Blight argumentou ainda que a queda desses
monumentos não implica em nada no passado, que seguirá inalterado. Sendo assim
não faria sentido destruir esses marcos. Já a historiadora brasileira Larissa
Ibúmi Moreira acredita que preservar as imagens desses “heróis” nos espaços
públicos é reproduzir cotidianamente da mesma violência que os ergueu. Ela defende ainda que História se faz no
presente e derrubar esses monumentos é tirá-la das mãos do opressor e recontá-la
como deve ser.
Monumento ao Abolicionista Joaquim Nabuco, no bairro de Santo Antônio, é um exemplo do 'salvador branco' (Foto: Tarciso Augusto/DP Foto)
A
questão é todo esse debate atravessa um terreno de memória em disputa,
assegurar a permanência de monumentos como o de Joaquim Nabuco, Lincon, Magia é
poder e o de Lenin significa nada mais nada menos do que um reflexo da
identidade da nação que um país reivindica no presente. Após um ano da queda do
Muro de Berlim, o monumento real de Lenin foi removido e enterrado nos
arredores da capital. A personagem Christiane, a mulher casada com a pátria socialista, observa
aterrorizada a transferência de um símbolo de tudo o que ela acreditava e
amava. Que país estava se erguendo afinal? Que valores? O que realmente
aconteceu enquanto esteve dormindo?
“Falar com sua mãe é como viver no passado” confessa uma amiga de Christiane para Alex. Que tipo de passado queremos evocar ao destruir Senzalas, transformando-as em aconchegantes hotéis fazenda e charmosas lobbys para recepção de turistas? Por que empenhar-se tanto em defender homenagens póstumas a genocidas bandeirantes? Que narrativa está sendo protegida quando estátuas de abolicionistas generosos ainda são retratados como figuras redentoras e oprimidos seguem humilhados aos seus pés? A narrativa colonial precisa realmente ser evocada no tempo presente reforçando os papéis de colono e subalternizado? Não há dúvida da vergonha nacional que a escravidão deixou no Brasil. No hino da Proclamação da República, composto em 1890, dois anos após a abolição assinada, consta o refrão
“Nós nem cremos que escravos outrora
Tenha havido em tão nobre País
Hoje o rubro lampejo da aurora
Acha irmãos, não tiranos hostis”
Grada
Kilomba dedica um capítulo inteiro de Memórias
da Plantação à tentativa de responder a pergunta “Quem pode falar?”. A
reflexão parte de Gayatri C. Spivak quando ela questiona se o subalterno pode
falar, na qual ela mesma responde que não. A negativa de Spivak não parte do
pressuposto de que o subalternizado é incapaz de articular a fala, mas à
posição de marginalidade e silenciamento que o pós-colonialismo impôs, à falta
de espaço onde o colonizado pudesse falar. Quando o faz, contribui para
construção de uma narrativa semelhante a proposta no monumento de Lincon,
defendido Blight. Mas o que faz alguém concordar com o argumento proposto pelo
professor de Yale e se opor a Ibúmi? Seria o prestígio das instituições que
cada um representa?
As
vozes que se levantam reivindicando a deposição de monumentos que evocam
narrativas violentas ainda seguem na margem, são corpos abjetos que “não pertencem” aos espaços que ocupam,
e esses corpos são negros, indígenas, mulheres... Estar na margem, segundo bell hooks, ainda é ser
parte do todo, no entanto fora do corpo principal. E o corpo principal é
branco, o centro é branco, as narrativas coloniais ainda expostas em praça
pública são brancas. Basta observar os personagens que levantaram em defesa da
estátua do oficial militar Robert E. Lee em Charleston. Quando
contramonunmentos[7]
acontecem, quem está à margem não quer reescrever o passado, que é obviamente
impossível de ser alterado. Trata-se na verdade de uma releitura do discurso
ali posto, o entendimento de que a manutenção de determinados memoriais
violentam corpos ainda subalternizados no presente.
Malcom
X fala da importância da descolonização de nossas mentes e imaginações, de
aprender a pensar e ver tudo sob um novo olhar de maneira que o protagonismo na
luta anti-racista aconteça enquanto sujeitos
e não como objetos. Por exemplo, no
dia 16 de dezembro de 1996, foi afixada em frente à prefeitura da cidade de
Colônia, na Alemanha, a primeira pedra de tropeço. Uma pequena placa de latão
de 10 cm² homenageando um dos milhares perseguidos e mortos pelo regime
nazista. Hoje já são mais de 70 mil homenagens espalhadas, restaurando
identidades de pessoas mortas num dos maiores genocídios da história moderna.
Geralmente as pedras são fixadas em frente à última residência da vítima, numa
solenidade íntima apenas com familiares. E fixadas no chão. As placas obrigam o
passante a fazer uma reverência simbólica àquela vida que partiu de forma tão
cruel e dolorosa.
Pedras de tropeço fixadas no chão em homenagem aos perseguidos e mortos pelo regime nazista alemão. Foto:dpa/Sebastian Widmann - Stolpersteine.
A
remoção da estátua de Lenin não chegou a ser uma questão para os países
aliados. Era óbvio que ela precisava cair, não fazia parte de um discurso de
centro, mas de margem, uma margem que não mais existia após a unificação. No
entanto, desenterrá-la para que as novas gerações conheçam esse pedaço da
história tornou-se um impasse. “As novas gerações não estão preparadas para se
confrontar com o que Lênin representava" disse Petra Rohland, alta
funcionária do departamento de Desenvolvimento Urbano de Berlim em 2014. Será
que ainda restam dúvidas sobre o poder desses monumentos e o que a deposição
deles pode representar?
[1] República
Democrática da Alemanha
[2]
Seguidores de Lord Voldemort, o grande vilão da franquia de livros e filmes.
[3] De
origem familiar exclusivamente mágica
[4]
Pessoas não mágicas
[5]
Expressão ofensiva direcionada a filhos de trouxas que nascem mágicos
[6] O
monumento retrata dois bruxos, um homem e uma mulher, sentados em tronos
esculpidos feitos dos corpos nus de trouxas torcidos e pressionados juntos para
apoiar os tronos da bruxa e do bruxo, e cada trouxa com os rostos contorcidos.
[7] Intervenções
que pretendem marcar a história dos oprimidos por trás dos “heróis”
monumentalizados.
Comentários
Postar um comentário
Gostou do que leu? Conta pra mim!