O mundo não está acabando



Lançado em 2019, pela Cia das letras, Ideias pra Adiar o fim do mundo, do imortal Ailton Krenk, me alcança num momento sensível às discussões que ele mobiliza. O título é uma provocação do autor que nos convida a refletir sobre uma leitura de mundo que não é nova nem para si nem para o seu povo. O livro é resultado de uma conferência ministrada no Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa, no Teatro Municipal Maria Matos, também em Portugal e para o catálogo da Conferência-dançada Antropocenos (2117). O texto já é leitura obrigatória em vários programas de pós-graduação.

Na lista dos mais vendidos da Feira Literária de Parati, a Flip, em 2019, Ideias para adiar o fim do mundo chega ao grande público num momento político tenso para as maiorias sub-representadas nos espaços de poder. O cenário de desesperança sem dúvida contribuiu pra que o livro ganhasse um tom profético, que acabou se agravando em 2020, ano da peste. O resultado das eleições de 2018 pode ter soado como uma das trombetas do apocalipse, mas este mundo, este céu que desaba, está sendo empurrado pra cima desde a invasão portuguesa em 1500 para os povos originários.

“Em 2018, quando estávamos na iminência de ser assaltados por uma situação nova no Brasil, me perguntaram: “Como os índios vão fazer diante disso tudo?” Eu falei: tem 500 anos que os índios  estão resistindo, eu estou preocupado é com os brancos, como vão fazer para escapar dessa.” P. 31

Ailton evoca a sabedoria ancestral de seu povo e parentes de outas etnias, que resistiram às investidas de um Estado violento, com a clareza de que o agravamento desse modo de operar iria se estender a outros grupos humanos. O livro não é sobre esta derrota política de 2018, mas sobre a estrada que nos trouxe até o presente momento.  O autor põe em xeque essa autoridade imbuída aos povos europeus de a levar luz, imagine só, àqueles que eram tidos como obscurecidos.

Questionaram os modos de vida de povos tradicionais, rotulando-os como inadequados, primitivos, atrasados e por vezes até acusados de se converterem em obstáculo ao progresso, ao desenvolvimento e a produção de riquezas. A pauta aqui é que o planeta é um organismo vivo, e não há distinção, para o autor, dentro de sua cosmologia, entre o que é natureza e o que é o ser humano. Nós somos parte integrante desse ecossistema complexo e sensível que é a vida. No entanto, parece que perdemos essa percepção.

Esse entendimento que nos separa de um todo muito maior, tem conduzido a humanidade a expropriação da natureza, a um esgotamento que interrompe a continuidade dos ciclos regulares de rios, florestas, oceanos, animais, montanhas, e isso tem um custo, não somente para as constelações de sujeitos que vivem intimamente ligados a esses contextos.

Ou mudamos radicalmente o nosso modo de nos relacionar com o planeta, ou nossa existência estará fadada a extinção. O mundo não está acabando, de forma alguma.  Mas essa sede por consumo, essa fome de ter para ser, está nos conduzindo a um abismo vazio e sem ponto de retorno.

“O tipo de humanidade zumbi que estamos sendo convocados a integrar não tolera tanto prazer, tanta fruição de vida. Então pregam o fim do mundo como uma possibilidade de fazer a gente desistir dos nossos próprios sonhos. E a minha provocação sobre adiar o fim do mundo é exatamente sempre poder contar mais uma história. Se pudermos fazer isso, estaremos adiando o fim.” P. 27

Esse livro transformou a minha percepção de vida e abriu as portas para outros autores que discutem essa mesma temática de forma assertiva.  Estamos na eminência de um desequilíbrio global sistêmico e continuado. A leitura de um pensador com Ailton Krenak, e outros que pretendo compartilhar aqui em outras postagens, é fundamental para engrossar o coro dos descontentes.

Sobre o autor

Ailton ganhou notoriedade em 1987, quando discursou noplenário da Assembleia Constituinte pintando o rosto com tinta preta extraída do jenipapo. A performance foi um protesto contra o retrocesso na luta pelos direitos indígenas. Em 2023, 35 anos depois, torna-se o primeiro indígena atomar assento na Academia Brasileira de Letras. Conheça outros títulos deste autor

A vida não é útil (2020)

O amanhã não está a Venda (2020) - gratuito na Amazon

O futuro é ancestral (2023)

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