Já parou para pensar porque esses romances de época ambientado em cortes europeias encantam tanto o público feminino? A ideia de um amor romântico desabrochando num contexto social adverso, para as mulheres, claro; casamentos arranjados que surpreendentemente se convertem em sentimentos sinceros; protagonistas astutas que burlam sutilmente as estruturas para sobreviver e garantir alguma segurança às outras mulheres de sua família. Nobre ou pobre, nada garante uma vida digna a essas mulheres senão um bom casamento e filhos dessas uniões. Tudo se resume a isso, ser uma boa esposa e parideira.
Eu particularmente tendo a achar tediosa essa dinâmica
enfadonha onde o conflito principal consiste em casar-e-ter-filhos. Mas
eventualmente me vejo absorvida em histórias como a da rainhas Mary Stuart da
Escócia (Reign, 2013), Darcy e Elizabeth (Orgulho e Preconceito, 2005), a
rainha Vitória (A jovem Rainha Vitória, 2009), Elisabeth II e a princesa Daiana
(The crown, 2016) e, todas as noivas de Bridgerton (Bridgerton, 2020) e Rainha
Charlote, (2023). Na literatura Jane Austen se consagra como grande nome desse
tipo de romance, tendo várias de suas obras adaptadas para séries televisivas e
filmes com performances premiadas.
É curioso, por que ela mesma não conseguiu o final felizpara si, mas a experiência frustrada pela família virou um romance e adaptação
para o cinema (Amor e inocência, 2007).
Confesso que ainda não li nenhum dos livros de Jane, pesquisando para
esse texto, descobri que ela usou de seu talento pra projetar um futuro que lhe
foi tomado de certa forma. Quando Lançaram a primeira temporada de Bridgerton,
lá em 2020, não consegui fugir ao estranhamento de uma corte etnicamente
diversa, mais que isso, uma rainha Negra numa corte europeia.
Enquanto a trama de Daphne e Simon se desenrolava, eu ficava
tentando preencher as lacunas que dissolveram completamente a tensão racial entre
colonizadores e colonizados. Afinal toda a abundância e riqueza, como bem
sabemos, foram construídas a partir da exploração de povos não brancos. Sem
dúvida a rainha Charlotte era peça chave nesse contexto. Mas, em se tratando de
uma produção com a mão de Shonda Rhimes, uma ficção antes de qualquer coisa,
nem todas as perguntas precisavam ser respondidas. Então eu só aceitei.
Nem mesmo no spin off de Bridgerton
a tensão racial/colonial é explicada 100%. Claro ela está ali, é parte
do conflito conduzido pela figura de Charlotte e o que uma rainha “como ela” representa
para os seus súditos, e mais ainda para pessoas “como ela”. Em momento algum a
questão da raça é mencionada pelos personagens, mesmo se tratando de uma
questão gritante e preocupante. Sendo consorte do Rei da Inglaterra; quer
dizer, ela não estava destinada àquele trono por sua linhagem de sangue, mas
ingressou através do casamento; Charlotte tinha um dever: ter filhos, assim no
plural. Coisa que descobrimos na série que leva seu nome logo no início, foi
muito bem resolvido pois conhecemos os seus 15 filhos.
Mas o que mais me faz brilhar os olhos no trabalho da Shonda,
é em como ela constrói o elenco dos seus projetos. Ela é o nome por trás do sucesso de Grey’s
Anatomy, os atores e atrizes foram escolhidos a partir de um método chamado Color Blind Casting que consiste em testar pessoas para os papéis
independente de suas características físicas. É super fácil fazer isso numa
série contemporânea, a questão é que quando se anda para trás tem coisas que
não podemos ignorar sem qualquer explicação que justifique algumas
escolhas. Brigerton se passa num
contexto europeu de época e toda a estética da série é construída com base
nesses pressupostos.
Eu não quero hierarquizar qual representação visual de
realeza é digna de um romance ou não, nem problematizar a ausência de
representações culturais das regiões que sofreram com a colonização como países
de África e Ásia. Num primeiro momento até pensei em questionar o quanto
personagens de origem africana ou indiana foram higienizados, e despidos de
qualquer traço cultural de suas origens para caber na história. Não é esse o
ponto aqui deste ensaio. O que quero é avaliar o que está posto, o que foi
apresentado para o público, e talvez pontuar coisas que justifiquem o sucesso
desta franquia.
Brigerton tinha tudo para ser mais uma série de romance
vitoriano açucarado, tal qual as obras aclamadas de Jane Austen. Mas eu arrisco
afirmar que ao incluir essa escolha “mais ou menos cega” do elenco, Shonda
tenha nos colocado para refletir sobre um passado real, e um passado que nunca
existiu, sobre “o que poderia ter sido se...”. E quando eu falo de “escolha
mais ou menos cega do elenco” é preciso falar que a personagem da rainha não
existe na série de livros, ela foi criada para série, e construída com base
numa série de especulações sobre a etnia da verdadeira rainha Charlotte, que é
a apontada como a primeira rainha negra da Inglaterra.
Centrar na coroa de Charlotte a questão da diversidade
racial no universo Brigerton, no meu ponto de vista, foi uma decisão muitíssimo
acertada, sem cair na armadilha da cultura woke mais ligada ao patrulhamento
ideológico. A sutileza da mensagem que Shonda apresenta na escolha de
personagens reais, na escalação do elenco, na estética especificamente dos
cabelos e perucas vai apresentando ao público uma perspectiva nova, um modelo
outro de existência. A colonizador sabe muito bem que dominar as narrativas é
uma arma tão poderosa quanto a invasão e posse dos territórios que eles ocupam.
A crítica social bell hooks refletiu sobre isso.
“De fato, uma tarefa fundamental dos pensadores negros críticos tem sido a luta para romper com os modelos hegemônicos de ver, pensar e ser que bloqueiam nossa capacidade de nos vermos em outra perspectiva, nos imaginarmos, nos descrevermos e nos inventarmos de modos que sejam libertadores. Sem isso, como poderemos desafiar e convidar os aliados não negros e os amigos a ousar olhar para nós de jeitos diferentes, a ousar quebrar sua perspectiva colonizadora?” hooks, bell. Olhares negros (bell hooks) (p. 29). Editora Elefante. Edição do Kindle.
É evidente que não estou pontuando aqui a relevância destas
obras audiovisuais para aluta antirracista, muito menos cravando que ela é
fundamental para todo e qualquer militante da causa. O que não dá é para fechar
os olhos para o subtexto que este trabalho carrega.
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