Chadwick e ancestralidade

 

Eu não tinha ideia do quanto uma ausência iria mexer comigo. Eu não tinha noção do quanto  eu podia falar. São palavras demais, não tem silêncio. Não tem porque muita coisa nos foi apresentada nos últimos anos e cada descoberta que se descortina conhecemos mais sobre nós mesmos, temos certeza de que nossos passos vêm de longe. Chadwick partiu aos 43 anos, mas dentro da filosofia wakandana a morte não é o fim, apenas o início de uma jornada. Quem ingressa nessa caminhada o faz de mãos dadas com dinvindades e encontra os ancestrais que o guiaram ao longo da vida.

Dentro de religiões de matriz africana existe o culto aos eguns, que pode ser definido como um culto aos ancestrais, a celabração e preservação da coletividade. No candomblé um Babá egun é a alma de um ancestral, é diferente dos pretos velhos, mestres de jurema ou caboclos. Esses eguns recebem as mesmas homenagens que os Orixás, porém as festas e celebrações não podem ocupar os mesmos espaços das dinvindades, geralmente são feitas ao ar livre ou em lugares específicos para isso.

Quando T'Chala, depois do ritual de passagem que o consagrou como rei de Wakanda e lhe deu o direito sobre o traje e título de Pantera Negra, outra cerimônia se fez necessária. Ao ingerir uma bebida feita a partir de uma erva sagrada ele acessa o mundo ancestral. Lá ele encontra não só o seu pai, o rei T'Chaka, mas todos os outros panteras negras. É uma das cenas mais lindas do filme. A questão é que, para T'Chala chegar àquele ponto todos aqueles homens já tinham trilhado um longo caminho, e agora estavam ali para tranferir-lhe conselhos e força.


Com certeza a ficção traduziu muito bem uma experiência espiritual praticada por religioões afro em vários lugares do mundo, e não é a primeira vez que a indústria americana faz isso. Em o Rei Leão, Mufasa, depois da salvar Simba do ataque da hienas no cimitério de elefantes, tem uma conversa com o herdeiro sobre medo, sobre o futuro e sobre o passado. Mufasa ensina ao pequeno que os grandes reis de outros tempos olham para terra a partir das estrelas, e que, sempre que ele se sentisse sozinho, poderia recorrer a eles, pois um dia ele mesmo estaria lá. Não por acaso essa cena da animação foi referência no filme do Pantera. O cenário, a luz, estava tudo lá.

Para além disso, o filme inteiro é a celebração de um passado, de uma ancestralidade, de uma multiplicidade de culturas e expressões que foi negada a todos os que sobreviveram a travessia do Atlântico para as Américas. Nossos ancetrais escravizados tiveram seus nomes trocados, foram misturados aos seus inimigos para que não pudessem se organizar em levantes, mas mesmo assim muitos o fizeram. Não podiam exercer sua fé, era obrigados a aprender e falar somente a língua de seus opressores; famílias foram desfeitas... 

De repente toda uma história que nos foi negada nos é apresentada num deslumbre. Niloticas da Etiópia e do Sudão, os Fulani da Nigéria, os Mssai do Quênia e da Tanzânia, os Himba de Angola e Namíbia, os Ashanti de Gana, as guerreiras Fon de Benin... Um panteão africano de beleza que eu nunca tinha visto, ou aprendido a admirar, todos ali diante de mim em cada detalhe. Chadwick se foi, e parece que perdemos um parente. Isso porque ele protagonizou uma história, uma alegoria de uma porção de histórias que nunca nos contaram, que esconderam de nós, que negaram e demonizaram. Wakanda é uma projeção utópica de África sem a mão violenta do colonizador.

Chadwick lutou durante quatro anos contra um câncer no cólon, gravou nove filmes ao longo desse período. Eu não consigo imaginar a dor que esse homem sentia, o esforço que ele empregou no trabalho escondendo o tratamento de tanta gente. Está longe de mim imaginá-lo como uma figura inabalável diante de tudo isso, mas é inevitável admirar. Ele sabia o que esse filme representaria em sua trajetória, ele viu crianças sendo profundamente tocadas pelo filme, ele viu a proporção que isso tomou no mundo inteiro. A ele, e toda à produção envolvida, obrigada, mais uma vez. À família, meus sentimentos mais profundos. Aos meus irmãos e irmãs, mantenham-se firmes. Yibambe.

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